25 janeiro, 2008

Sentidos

É impressionante o que as pessoas fazem quando estão desesperadas. Há coisas que nunca me passaram pela cabeça. Quando se está na rua é como se a nossa cabeça se fosse alterando para se adaptar. Às tantas damos por nós a funcionar de uma forma que, em qualquer outro contexto, seria completamente desadequada. Progressivamente vai-se perdendo tudo: o cuidado com a aparência, a preocupação com a hegiene, e no fim, o próprio amor à vida. É por isso que muitas pessoas não querem sair da rua. Simplesmente já não querem saber de nada. Há uns tempos fomos falar com um senhor que dorme nas escadas da Igreja de Arroios, conhecido como o "Campeão". "Campeão" porque ninguém bebe tanto bagaço como ele, especialmente logo de manhã. Obviamente este homem não quer sair da rua, ele mesmo diz que na rua é que está bem. Pois claro. Sair da rua seria admitir que não é nenhum campeão, era roubar-lhe a unica identidade que tinha, ainda por cima uma identidade que, para ele, é positiva.
É nestas coisas que, muitas vezes, se falha. Sair da rua não é simplesmente sair da rua. Não é pô-los numa casa. Li algures num livro que os técnicos fazem exigências aos sem-abrigo do género "só tem que tomar a medicação" ou "só tem que deixar os consumos". Isto, na minha perspectiva, está errado. E longe da realidade. Cada vez mais se aceita que a reabilitação de um sem-abrigo, tenha consumos ou não, passa por uma intervenção que toque todos os aspectos da vida: a casa, o trabalho, os consumos, a familia, a saúde física e mental. Eles têm que procurar um novo sentido para a vida, aprender a viver de novo em sociedade. Na nossa sociedade. E isto não é fácil, nem rápido e muito menos barato. Ao contrário do que as pessoas pensam é relativamente fácil cair nesta situação. E muitos deles são pessoas potencialmente productivas. Desde que cheguei à Comunidade Vida e Paz conheci mais pessoas especiais do que em qualquer outra altura da minha vida. E saber que conseguem, efectivamente, recomeçar uma vida que quase perderam, é algo que me preenche como nunca nada preencheu até hoje. Bolas, gosto mesmo de trabalhar aqui!

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